Homilia – Solenidade de São Vicente, padroeiro do Patriarcado de Lisboa

Para idêntico testemunho de caridade e de paz
Homilia na solenidade de São Vicente, padroeiro do Patriarcado de Lisboa

Do Evangelho que acabamos de ouvir, irmãos caríssimos, fixemos em especial estas palavras de Jesus: «Sereis levados, por minha causa, à presença de governadores e de reis, para que deis testemunho diante deles […]. Não sereis vós que falareis: o Espírito do vosso Pai é que falará por vós […]. Aquele que permanecer firme até ao fim é que há de salvar-se». 
Quando o Evangelista as escreveu, elas ganhavam já a comprovação dos primeiros mártires do cristianismo. Depois, no princípio do século IV, assim mesmo aconteceu com Vicente – especialmente recordado nesta cidade de Lisboa, cuja tradição e heráldica a ele se vinculam. Diácono em Saragoça, aquando da perseguição de Diocleciano, recusou-se a entregar os livros do culto e a abjurar da fé. Levado para Valência, sujeito ao interrogatório e à tortura, faleceria a 22 de janeiro de 304. 


Na tradição que seguimos, alguém trouxe depois os restos mortais de Vicente para o antigo Promontório Sacro, no Algarve, onde suscitaram o culto dos moçárabes, como a história e a toponímia confirmam. D. Afonso Henriques conseguiu a sua vinda para Lisboa e as relíquias foram de novo objeto de culto atestado, com peregrinos de várias proveniências, mesmo de além-fronteiras. O que delas resta, guarda-se nesta sé e é hoje solenemente venerado. Ano após ano, a celebração de São Vicente traz-nos aqui e permite-nos aprofundar o significado do seu testemunho para a diocese e a cidade.  
Do que sabemos do martírio de São Vicente, tiramos sobretudo o desassombro com que afirmou a sua fé e a coragem com que o fez até ao fim, às mãos de quem o queria calar como cristão confesso. Desassombro e coragem, lembremos, que em nada se impunham aos demais, senão pela convicção pessoal dum verdadeiro crente e a repercussão que isso mesmo tinha no seu modo de viver e conviver, seguindo os preceitos de Cristo. 
Acontecia, porém, que aos olhos dos imperadores da altura, não praticar o culto oficial de Roma era enfraquecer a coesão necessária para resistir às ameaças externas; ou mesmo provocar a ira dos deuses, ultrajados por tais rebeldias… Daí que a perseguição de Diocleciano e seus companheiros de governo tenha sido porventura a mais drástica e com mais vítimas entre os cristãos.
Cumpriu-se o Evangelho que ouvimos: «Aquele que permanecer firme até ao fim é que há de salvar-se». Assim com Vicente, que se salvou porque a integridade mantida garante a eternidade feliz. E o seu martírio salvou muitos outros, porque a santidade é a substância da história. 
Não foi certamente um acaso o facto de durante séculos de ocupação da Península por governantes doutro credo – como também em Lisboa do século VIII ao XII – a população cristã se ter fortalecido com a memória viva dos que tinham dado testemunho da sua fé «até ao fim». Lembrava-se Vicente, como se lembrariam Veríssimo, Máxima e Júlia e tantos mais, todos do tempo das perseguições romanas. Continuavam vivos e faziam viver. Como também é significativo – e muito significativo hoje em dia – que tais memórias permanecessem sob o domínio de outro credo, também pelo modo pacífico e convicto com que os mártires testemunharam o Evangelho da Paz. Na verdade, então como sempre, só a caridade convence, como se propõe e atrai. O contrário, nem seria propriamente história, mas ainda pré-história e barbárie. – Nas atuais circunstâncias, do mundo e da Igreja, que significado pode ter tudo isto, mesmo evitando anacronismos? 

Quanto ao mundo, lembremos, com alguma aproximação temática, os recentes acontecimentos em França. Terroristas, ditos “islâmicos”, assassinaram jornalistas duma revista polémica, que tratara irreverentemente a figura de Maomé. A comoção foi geral, ocasionando uma grande manifestação de condenação do ato e em defesa da liberdade de expressão. Suscitou-se também a reflexão sobre a liberdade e a responsabilidade, na respetiva relação. Tema que, aliás, tem acompanhado a vida “ocidental” desde há séculos, tendo especialmente em conta o contraste de crenças e descrenças de vário tipo. 
Dois pontos se poderão considerar, a propósito: 1º) Que as sociedades sempre se organizaram em torno de convicções e símbolos, que traduzem valores de base. E que, quando as sociedades ou grupos sofrem necessidades imediatas de subsistência e segurança, tais convicções são geralmente coercivas e tidas como condição de sobrevivência geral: assim acontecia com o Império Romano no tempo do mártir Vicente, com o primeiro a proibir qualquer culto que não fosse o oficial e securitário e com o segundo a resistir, já em nome da convicção pessoal cristã. 2º) Quando as sociedades conseguem, ao menos em grupos determinantes, alguma segurança e disponibilidade individual, tal permite maior capacidade de reflexão e assunção pessoal das crenças ou descrenças, em progressiva tolerância para com os outros. Aqui se repercutiu paulatinamente o Cristianismo essencial e a sua crescente influência no “cristianismo histórico”, até aos nossos dias. 
Os inevitáveis debates sobre segurança coletiva versus liberdade individual, ou sobre objetividade versus subjetividade da verdade, tiveram, nas sociedades marcadas pelo cristianismo um fértil campo de exercício. Bem vistas as coisas, os debates, por vezes trágicos, que assinalaram o caminho das liberdades no mundo que mais diretamente nos toca, foram debates internos duma sociocultura “cristã” – ortodoxa ou heterodoxamente tal -, também herdeira doutras culturas que, a seu modo, recompôs. 
Assim conseguimos chegar ao último concílio ecuménico e à sua declaração sobre a liberdade religiosa, ou o justo relacionamento da religião com a liberdade. Dela cumpre lembrar dois passos, particularmente oportunos. O primeiro acolhe a atualidade irrecusável: «Os homens do nosso tempo tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e cresce o número daqueles que exigem poder agir de acordo com os seus critérios no exercício duma liberdade responsável, guiados apenas pela consciência do dever e não por qualquer coação» (Declaração sobre a liberdade religiosa, nº 1).

A não coercibilidade das convicções e da respetiva publicitação – que o martírio de Vicente assinalava já, sem forçarmos a nota – é ponto imprescindível da fermentação evangélica finalmente conseguida, em harmonia, aliás, com a progressiva afirmação do espírito humano. E, quando o citado trecho conciliar, fala de “liberdade responsável”, não está a opor responsabilidade a liberdade, pois uma e outra não só coexistem como quase se identificam, já que todo o pensamento e agir humanos traduzem reação e resposta, mesmo quando não pareçam. Liberdade é “responsabilidade”, ou disponibilidade pessoal e publicamente garantida para responder por si às questões que a existência e a coexistência colocam. E nisto mesmo deve ser a liberdade respeitada e promovida, nunca dispensada ou coagida.
Somos assim livres com os outros, que a tal nos induzem e nunca são dispensáveis. Daqui que a mesma declaração conciliar acrescente o seguinte: «No uso de todas as liberdades deve observar-se o princípio moral da responsabilidade pessoal e soc
ial. No exercício dos seus direitos, todos os indivíduos e grupos sociais são moralmente obrigados a ter em conta os direitos dos outros e os seus deveres para com os demais e para com o bem comum. Com todos se deve proceder em justiça e humanidade» (Declaração sobre a liberdade religiosa, nº 7).  
Voltando aos trágicos acontecimentos de Paris e às polémicas que avivaram, diremos que não se pode pôr em causa a liberdade de expressão, nem esquecer que ela inclui intrinsecamente a responsabilidade. Responsabilidade que deve ser apurada nos órgãos que a sociedade democrática mantém para tutelar o bem comum e rejeitando qualquer tipo de violência no agir e no reagir.
Mas podemos ainda interrogar-nos se, sendo hoje da máxima urgência alargar o diálogo intercultural e inter-religioso a favor da paz, a melhor maneira de progredir nesse sentido é denegrir e ridicularizar as convicções dos outros. E não só nos seus eventuais pontos fracos, mas até nos respetivos fundamentos…     
O modo como Vicente viveu e compartilhou “até ao fim” as suas convicções deve também inspirar-nos, como Igreja, para uma correta posição no mundo. Posição que o Papa Bento XVI apresentou entre nós com palavras basilares: «Nada impomos, mas sempre propomos» (Homilia no Porto, 14 de maio de 2010). Evangelização significa boa notícia, e precisamente a que Deus nos dá na vida, morte e ressurreição de Jesus, como nós os crentes a recebemos e desejamos reproduzir nos vários domínios da nossa própria existência: pessoal e familiar, comunitária e cívica, económica e política, local e global. Nada impondo ou coagindo, mas propondo sempre, nisso mesmo que fazemos, repartindo o significado e o ânimo que nos foram legados por uma cadeia bimilenar de testemunhos.
No Patriarcado de Lisboa, tal se traduz agora na caminhada sinodal que empreendemos, visando concretizar tudo quanto o Papa Francisco nos indicou como programa na exortação apostólica Evangelii Gaudium, transportados pelo “sonho missionário de chegar a todos” e em especial aos que mais precisam de ser realmente aviventados pela alegria do Evangelho. Lembraremos, ainda, que o mártir que veneramos e temos por padroeiro principal era “diácono”, palavra e ministério que se traduzem em serviço, prioritariamente dos mais pobres e frágeis.Sendo este o nosso campo de atuação, não se trata de impor o que quer que seja, senão de propor e oferecer a quem quer que precise o mesmo que Cristo nos ofereceu a todos: presença, companhia, pão do corpo e do espírito, esperança preenchida por ações solidárias que a sustentem.
Concluamos com palavras antigas, aplicando à Lisboa de agora o seguinte trecho dos tempos visigóticos: «Ainda que Vicente, que especialmente honrou a amizade de Cristo, deva ser venerado por todos os cristãos juntamente com os restantes mártires pela santa confissão da sua fé, ele, porém, está mais unido a nós por uma certa afeição provinda da mesma origem e linhagem, pois ele é nosso pela sua estirpe, nosso pela sua fé, […] nosso na sua glória, nosso no seu ministério, nosso no seu túmulo, nosso no seu patrocínio» (Sermão de São Justo, bispo de Urgel, in Santos e milagres na Idade Média em Portugal, São Vicente, Lisboa, 2012, p. 91).

– E o patrocínio de São Vicente levará a cidade e o Patriarcado a idêntico testemunho de caridade e de paz! 
 
Sé de Lisboa, 22 de janeiro de 2015
+ Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa 

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