Diác. Juranir Rossatti Machado (Brasil): "A espiritualidades da viuvez"

A ESPIRITUALIDADE DA VIUVEZ

Diác. Juranir Rossatti Machado, RJ (CRD Leste 1)
Integrante da ENAP – Equipe Nacional de Assessoria Pedagógica da CND

Através de breves apontamentos, apresentamos uma sucinta reflexão sobre a espiritualidade da viuvez cristã, vivida especialmente no contexto católico. Referir-nos-emos a alguns pontos que julgamos oportunos no momento. Chamamos a atenção para o conceito de viuvez; procuramos despertar o interesse para a multiplicidade de situações vividas pelas pessoas viúvas, homens e mulheres; direcionamos nossa leitura para o apoio que o cristianismo dá às viúvas desde seus primórdios; apontamos aspectos de fortalecimento da espiritualidade da viuvez cristã. A bem da verdade, confessamos que a motivação para expormos estas ideias está ligada a um convite recebido de um grupo de Pastoral da Família para apresentarmos este assunto aos seus membros que vivem a condição de viuvez.

A palavra viuvez traz-nos a ideia de “privação de”, considerando seu aspecto etimológico. Ocorre em consequência da morte de um dos cônjuges. Havendo novo casamento, cessa a condição de viúvo ou de viúva. (1)

As situações vividas durante a viuvez estão associadas a múltiplos fatores, entre os quais se acham presentes as razões culturais, religiosas, econômicas e políticas. Podemos dizer que cada caso de viuvez é uma história diferente, que se desenrola dentro de um cenário construído por um ou mais desses fatores. Cada um deles tem o seu peso e sua influência. Por exemplo, a dimensão religiosa do casal determina geralmente a prática da espiritualidade da viuvez. Podemos considerar um outro exemplo. Não se trata de comparar o sentimento de perda e de dor. É diferente a sensação experimentada diante da viuvez ocorrida em virtude da morte repentina de um cônjuge daquela sensação vivida em razão da morte que chega após uma longa e sofrida enfermidade. No primeiro caso, o inesperado entra em cena, trazendo consigo suas sequelas; e, no segundo, a previsibilidade atua com bastante força, provocando certa sensação de alívio e descanso. Evidentemente, em nossos dias, as considerações da viuvez não podem descartar o apoio oriundo de iniciativas de instituições sociais, religiosas e do próprio sistema de governo.

Desde os tempos bíblicos até a época atual, a estrutura familiar passou por inúmeras e significativas mudanças. As mulheres, que consquistaram muito mais direitos do que há poucos anos atrás, particularmente no Ocidente, vivem uma dimensão de maior liberdade no campo do trabalho, contribuindo com o seu labor na sustentação da própria família. Há maior partilha nas atividades tipicamente domésticas. Hoje, a sociedade testemunha novos modelos de família, que, de alguma maneira, exercem interferência na questão da espiritualidade da viuvez. Dentro desta pluralidade de modelos de família, é possível que encontremos alguma que não ostente tipo algum de espiritualidade da viuvez; mas, considerando que o homem, em sua natureza mais profunda, é um ser religioso, como nos aponta a História das Religiões ou a História Universal (2) e é “capaz” de buscar a Deus, como nos lembra o Catecismo da Igreja Católica (3), não podemos afirmar que não exista nenhum nível de espiritualidade no estado de viuvez nesse ou naquele modelo de família que a modernidade e pós-modernidade nos apresentam (4).

Desde o seu início, a Igreja se empenha a favor de melhores condições daqueles que vivem a viuvez. É o que nos lembra o inesquecível Dom Estêvão Bettencourt em seu artigo A Igreja e a viuvez. Depois de frisar que a “viuvez como tal sempre foi tida em alta estima no cristianismo” e trazendo à nossa lembrança postura de “particular benevolência” de Cristo em relação às viúvas (Lc 2, 36-38; 7, 11-16; 21, 2s), o saudoso sacerdote nos relata: “Aquelas que tivessem atingido a idade de sessenta anos e fizessem o propósito de permanecer viúvas até o fim da vida, comportando-se irrepreensivelmente, constituíam uma categoria própria e oficialmente reconhecida na Igreja, categoria à qual a comunidade prestava assistência material e espiritual. Eram-lhes especialmente recomendadas as boas obras, entre as quais a hospitalidade, o serviço de indigentes e principalmente a oração.” Citando do Apóstolo dos Gentios 1Tm 5, 5, Dom Estêvão arremata: “Vê-se assim que São Paulo e a antiga Igreja tendiam a fazer da viuvez um estado especialmente consagrado a Deus, propondo-lhe o ideal da vida una, indivisa, vida que é característica do estado virginal; a viúva destarte procuraria imitar o ideal sublime da virgindade, depois da haver passado pelo matrimônio. Claro está que, propondo este programa, o Apóstolo não intencionava proibir as segundas núpcias; ao contrário, recomendava-as a quem não se pudesse conduzir condignamente sem elas (cf. 1Tm 5, 14; 1Cor 7, 9.39s).” Existe na Igreja a tradicional interpretação de que o surgimento dos sete diáconos ou do ministério diaconal está associado intimamente a “uma murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as suas viúvas eram desatendidas na distribuição cotidiana (socorros)” (At 6, 1 – Bíblia Sagrada – Edições Paulinas). Pelo texto e contexto, percebe-se que a primeira tarefa do diácono relaciona-se à caridade, tendo como foco principal, na época, a assistência às viúvas: “Não é conveniente que nós deixemos a palavra de Deus para servir às mesas. Portanto, irmãos, escolhei dentre vós sete varões de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais encarreguemos dessa obra.” (At 6, 2-3 – Bíblia Sagrada – Edições Paulinas).

Aos 16 de setembro de 1957, o Santo Padre Pio XII proferiu um discurso sobre a grandeza da viuvez cristã. Em suas palavras, lembrou que o matrimônio cristão é imagem e participação da união esponsal de Cristo com a Igreja. Vivendo a sua viuvez, a mulher é sinal da Igreja que não conta com a “presença sensível” de Cristo, “embora ele lhe assista intimamente”, frisou o Pontífice.

A morte de um cônjuge provoca diversos níveis de emoção. A emoção movimenta nossa tensão; mas ela não pode violentar a área do discernimento e tumultuar os pensamentos, movendo-os para regiões carentes de clareza e de bom senso. Essa graduação emocional está unida a uma variedade de circunstâncias dentro das quais a morte ocorre. Acreditamos que a morte inesperada ou repentina seja fonte de uma emoção bem maior, sentimento que exige esmerado e prudente cuidado, para que não se torne causa de transtornos como a depressão, a perda do sentido da vida, a sensação de desamparo e até o suicídio. A espiritualidade vivida pelos cônjuges tem muito a ver com o gerenciamento da emoção diante da morte de um deles. A morte não fecha os olhos às novas realidades que surgem no cenário da vida de um viúvo ou de uma viúva. Vivida autenticamente, impulsionada pela realização dos compromissos matrimoniais e alicerçada pelas graças próprias do pacto nupcial, a espiritualidade da viuvez torna-se uma sustentação na busca do equilíbrio emocional e de superação de problemas oriundos da morte do cônjuge.

No contexto católico, a espiritualidade que viúvo e viúva são chamados a viver traz dois pontos fundamentais: ressurreição e comunhão dos santos. A certeza da ressurreição tem sua seta direcionada para a vida eterna. É nossa vocação no projeto de Deus ao nos criar à sua imagem e semelhança. A comunhão dos santos nos afirma que o elo de amor entre marido e mulher não se desfaz com a morte; mas que a morte desfaz, sim, o vínculo matrimonial. A morte não tem capacidade de romper a corrente de amor firmada em Deus-Amor. Em seu discurso sobre a grandeza da viuvez cristã, proferido em 1957, o Papa Pio XII lembra: “Longe de destruir os laços do amor humano e sobrenatural contraídos pelo matrimônio, a morte os pode aperfeiçoar e reforçar, sem dúvida, no terreno meramente jurídico e no das realidades sensíveis, a instituição matrimonial (após a morte de um dos cônjuges) não existe mais; mas o que constituía a alma da mesma, o que lhe dava vigor e beleza, isto é, o amor conjugal, com todo o seu esplendor e seus votos de eternidade, subsiste, como subsistem os seres espirituais e livres que se devotaram um ao outro…”.

Em o Novo Testamento, são inúmeras as passagens que se referem à ressurreição e à vida eterna. Fiquemos apenas com alguns exemplos: Mt 22, 23-33; 26, 32; Mc 14, 28; Lc 24, 1-12; Jo 11, 25; 1 Cor 15, 12-19. Do parágrafo 946 ao parágrafo 957, o Catecismo da Igreja Católica apresenta a doutrina sobre a comunhão dos santos. Transcrevemos o parágrafo 955: “A união dos que estão na terra com os irmãos que descansam na paz de Cristo, de maneira alguma se interrompe; pelo contrário, segundo a fé perene da Igreja, vê-se fortalecida pela comunicação dos bens espirituais”. Em a Cura da dor mais profunda (5), encontramos estas palavras firmadas na doutrina da Igreja: “São Paulo nos conta que o amor nunca termina (cf. 1 Cor 13, 8.13), e a saudade que sentimos de nossos mortos queridos revela uma verdade sobre a eternidade do amor. Quando negamos ou reprimimos nossos anseios de amor, dizendo a nós mesmos que devemos “renunciar”, nosso sofrimento pode tornar-se patológico”. Não podemos esquecer que o ensinamento sobre a comunhão dos santos (fieis cristãos vivos ou mortos) tem como uma de suas bases o que Paulo nos ensina a respeito do Corpo Místico de Cristo, cuja cabeça é o próprio Senhor (1 Cor 12, 12-27; Cl 1, 18). Aqueles que morrem na graça de Deus se tornam nossos intercessores. Esta é a fé que vem dos primórdios do cristianismo. Trata-se da dimensão da solidariedade entre os membros do Corpo de Cristo.

Os dois pontos fundamentais da espiritualidade da viuvez cristã, ressurreição e comunhão dos santos, devem fomentar no viúvo e na viúva a continuidade do testemunho da fé e devem ser meios de enfrentamento de algum transtorno provocado pela morte de seu cônjuge. A continuidade do testemunho de fé significa perseverança no acolhimento dos valores transmitidos pela Igreja e refletidos na prática da oração, na vivência sacramental e no empenho missionário, que tem sua nascente nas águas batismais. A certeza da ressurreição – sopro eterno de vida que provém do Espírito de Deus – e a convicção de que a morte não destrói a união daqueles que se amam sejam o combustível da esperança e motivações para a fuga do isolamento social, que pode tornar-se uma prisão psicológica. Na certeza da ressurreição e da fé na comunhão dos santos brotam a força da vivência da espiritualidade. E esta força, gerenciando as emoções, leva ao cultivo da serenidade diante do mistério da morte, desperta a coragem e a confiança no enfrentamento de possíveis transtornos, assinala o compromisso de fortalecimento da dimensão da Igreja doméstica.
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Referências

(1) “VIÚVO adj (Do lat viduus) 1. Diz-se da pessoa cujo cônjuge está morto. – Só, abandonado, desamparado. – Privado, carente.” (Grande Enciclopédia Larousse Cultural)

(2) “Não há povo tão primitivo, tão bárbaro, que não admita a existência de deuses, ainda que se engane sobre sua natureza.” (Cícero, orador e político romano, 106-43 a.C.) – “Podereis encontrar uma cidade uma cidade sem muralhas, sem edifícios, sem ginásios, sem sem leis, sem uso de moedas como dinheiro, sem cultura das letras. Mas um povo sem Deus, sem oração, sem juramentos, sem ritos religiosos, sem sacrifícios, tal nunca se viu.”

(3) “O desejo de Deus está inscrito no coração do homem, já que o homem é criado por Deus; e Deus não cessa de atrair o homem a si, e somente em Deus o homem há de encontrar a verdade e a felicidade que não cessa de procurar.” (Catecismo da Igreja Católica, 27)

(4) “Na sua história, até os dias de hoje, os homens têm expressado de múltiplas maneiras a sua busca de Deus através de suas crenças e seus comportamentos religiosos (orações, sacrifícios, cultos, meditações, etc.). Apesar das ambiguidades que podem comportar, estas formas de expressão são tão universais que pode-se chamar o homem de um ser religioso.” (Catecismo da Igreja Católica, 28)

(5) Cura da dor mais profunda / Matthew Linn, Dennis Linn, Sheila Frabricant; (tradução: Jacira R. Simaika) – São Paulo: Verus,, 2000).

Tomado de: http://sbenedito.dj.org.br

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